sábado, 27 de dezembro de 2008

meia-noite no palácio da besta

eles me trouxeram aqui. depois me deixaram de repente, todos pelo mesmo motivo fulminante. como fizeram para esperar isso que viria inevitavelmente? lembro-me do cheiro de alecrim de um. o outro pintava o rosto de azul. me trouxeram pelas mãos sem me conhecer, mas entre nós havia uma afetividade que há entre os que possuem a mesma ferida. e que dói de repente e nos torna inteiramente brancos. é noite (como não seria). não vejo seus rostos. beijam-me e se despedem. a terra é seca e coberta do pó do que disseram. já vão tão cedo? sim, tão cedo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

romã

essa moça vem e me dá um grão de romã. passa os dedos nos meus olhos. eu fecho os olhos. diz uma coisa pra mim. lava meus pés na fonte. lava minhas mãos, passa azeite na minha testa e dedos. me põe brincos e anéis prateados. me cobre a cabeça. me dá leite para beber. tudo isso sei de olhos fechados. põe a mão no meu peito e diz que tudo está perdoado. e vamos embora.

sábado, 1 de novembro de 2008

(silêncio: uma flor abriu-se sobre o nada)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

(está dormindo. está vencida. de longe atrás dos vidros. e eu estou sozinho. vencido. dormindo)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

acordou comigo: mordeu minha boca por dentro: montou em mim. 
sinto cheiro de flores esmagadas. seu hálito me esfria e esquenta.
meu corpo cheira a saliva. morangos velhos numa vasilha. roupas molhadas mofando.
roubou mais um dia.

sábado, 4 de outubro de 2008

que fazemos com o tempo enquanto estamos vivos?

- amamos

quem eu amo eu mato.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

dentro da casa há um cavalo que tenta derrubá-la. minha mãe me fala: não ouça o cavalo. ouvi. dentro da minha casa há um cavalo que destrói tudo. anda quando apago as luzes (durmo de luzes acesas), ou quando estou sozinho (nunca estou sozinho), ou quando sonho (sonho com um homem forte que me seduz e que decide me amar, quando vamos nos encontrar ele desaparece). às vezes me lambe durante a noite a cara.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

sonho que entro numa sala onde há deuses aprisionados por correntes de prata em seus pescoços e eles têm o nome das constelações. converso com um, e prometo libertá-lo. arrebento a corrente-colar prateada em seu pescoço e ele está livre. eu sou Hércules e sou a Terra. antes de libertar cada um, pergunto se querem ser libertados. quando arrebento as colares de prata, se libertam de serem constelações no céu. usam máscaras e não posso ver seus rostos. um com uma máscara circular negra com uma espiral amarela pequena. pergunto se ele quer ser libertado, e ele diz: não, porque a mim é importante a imobilidade. e sorriu (a máscara imóvel)
entra no quarto um ser maligno que estava me perseguindo. liberto todos os deuses acorrentados: andrômeda está entre eles. eles correm comigo para fora do lugar e é noite e fugimos por uma avenida escura ao lado de um rio. chegamos a uma grade que está no meio da avenida, e passo por uma porta nela, mas um policial aparece e diz que os deuses não podem cruzá-la. acordo com a sensação de que os deuses serão capturados pela força maligna novamente.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

quando minha mãe morreu, disse: vá procurar seu pai em Vitória. foi o que ela disse. quando cheguei lá por um caminho que não me lembro, não havia ninguém com o nome dele. procurei no cemitério e encontrei duas lápides sem nome. um pombo morto dentro de uma gaiola. e o céu de inverno. e o barulho da cidade continuando.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

(half of me lives in the dark. sometimes, the enlighted side falls asleep, tired. and then I have to gather new dreams, new pictures, new memories to burn, so there's light. sometimes there's nothing to burn. then, I wait.)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

é tarde, o sol já nasceu e entra pelas coisas, cubro tudo de cobertores e fecho as janelas com trapos pretos. não posso fazê-lo voltar, nem ao menos escondê-lo. vou precisar ter paciência para esperar que vá embora - tudo o que ele toca seca e se desfaz. me escondo debaixo de cobertores e respiro o ar viciado até que vá embora. não posso contê-lo.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

sonhei que meus cabelos voltavam a crescer

terça-feira, 5 de agosto de 2008

segunda-feira, 28 de julho de 2008

golem

sonho que preciso erguer do fundo do rio, durante a noite, golens para que me protejam nessa viagem que irei realizar em direção a um lugar incrivelmente perigoso, e sei que eles serão sacrificados. o tempo é quem os contrói. só encontro um golem criança, e o homem que estava dirigindo a van me diz para levarmos esse mesmo, e eu concordo. o rio é um córrego que passa ao lado da casa de cecília, e ela está em casa. vejo a forma dos golens imaturos, se formando, mas não há tempo para esperar, pois está amanhecendo.

desperto.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

(os cavalos e os bichos de quatro patas e cascos fendidos correm por cima de tudo o que cresceu em mim a muito custo, com os olhos brancos se trombam, enlameiam, arrastam o varal, estalam as conchas no chão
o som disso me agrada terrivelmente)

segunda-feira, 30 de junho de 2008

(as coisas esperam
tudo seco
por cima das coisas a superfície das coisas
e dentro delas os deuses
chove sobre os que dormem
me deito e me cubro de bronze)
acordo com o nariz arranhado: a besta-fera me visitou
vi em meu rosto pela manhã
de noite, ela me beijou o rosto e foi embora

sozinho eu concordo com um diálogo que ninguém ouve: é claro, sim, tem razão. como faço sempre, com todos os diálogos. e fazendo sempre o mesmo recebo sempre os mesmos elogios: que sou interessante, que sou eloqüente, que conheço muitas coisas. ausento-me e os olhos deles me preenchem do que querem. me debato de noite. não lembro pela manhã se tive algum pesadelo. acho que sonharam por mim.

minha boca está cheia de aftas. a besta-fera com seus dentes me beija. roça o nariz e o rosto de tigre em mim. minha pele descama.

terça-feira, 10 de junho de 2008

uma sereia com cauda bífida tenta me arrastar até minas submarinas cor de cobre

encontro um barracão onde só eu ouço os gritos. nesse campo de concentração não consigo descer até o segundo andar, onde as velhas e velhos estão amarrados nos instrumentos onde morreram. no primeiro andar, abençôo com saliva as crianças mortas que tentam sair da casa, por falta d'água, depois de rezar. em nome de meu pai, eu te abençôo. quando consigo alguma água, jogo sobre elas, que fecham os olhos. saímos da casa em direção a uma grama baixa e escura, num morro onde não há mais nada.

terça-feira, 3 de junho de 2008

havia algo acontecendo
não sei se estava chovendo demais ou um eclipse
ou não chovia mais ou o sol não se punha
e eu chamava um amigo para me ajudar a investigar
mas eu era os dois
um dos eus descobre de onde está vindo o problema: um templo de Zeus que não podíamos ver porque estava atrás de uma ilha
numa arquitetura super moderna, voltado para o sol sobre o mar
voávamos para lá e havia uma fogueira em cima
o que eu achava estranho, pensava quem acendia aquele fogo

segunda-feira, 2 de junho de 2008

não lembro meus sonhos. eles se matam antes que eu desperte e assim bebo seu sangue cor de vidro e óleo limpo.

domingo, 25 de maio de 2008

lista infantil 1

cruzeiro do sul
três Marias
a mãe, a vó e a bisavó
chá de hortelã feito em vela no quintal
erva cidreira à noite
novela
ambrosia
nuvem de claras em calda de limão
cravos
sementes que estouram na mão
chiclete que estoura na boca
um chiqueiro abandonado
trilha no mato
líquen
leite de saquinho
alfajor
bicicleta vermelha
sapatos amarelos
aids
gosto da língua no jarro de barro
remédio para reumatismo
amaciante
pantufa
caxumba
flores coloridas do mato
flores laranjas do mato
cachecol de todas as cores
parque com caixa de areia
amoxicilina
paracetamol
tylenol
oxycilina
claritromicina
mercúrio cromo
cebion
biotônico
óleo de fígado de bacalhau
melhoral infantil
bactrim
polivitamínico
violeta genciana
colírio
mel
própolis
chá
escabin
nistatina
tripa de mico
seringa roxa
seringa vermelha
seringa amarela
toalha na mesa
cinco da manhã as xícaras batem nos pires na cozinha
febre

quinta-feira, 22 de maio de 2008

não entendo o que ela diz. vejo seu rosto submerso na água. fala muito rápido, o ar esconde sua cara e cada vez mais ela fica agressiva. não sei se deseja que eu retorne à superfície ou que eu termine algo que comecei. não me movo. debaixo d'água tudo é silencioso. não me movo.

domingo, 18 de maio de 2008

escrevo porque estive equivocado. todo esse tempo que pensei ser alguém das sombras foi desperdiçado. pertenço agressivamente ao dia e à luz. não posso dormir no escuro e só durmo bem se o dia já nasceu. e se é tarde, me divido entre sair ou adormecer tranqüilo. fico a noite inteira acordado esperando o dia. falei esse tempo inteiro de algo que eu não conhecia, na ausência disso que eu sabia eu inventava. inventava meu outro, em minha ausência. percebo isso e escrevo para que não me esqueça (tenho certeza de que não me esquecerei). precisarei tomar medidas: enfrentar a noite para dormir bem e não passar o dia exausto. acolher-me na luz que não sei descrever. não é quente. estou acostumado a descrever pela ausência, como pode notar. precisarei não esquecer (porque sei que isso que digo moverá algo muito leve e eu posso me esquecer e voltar ao hábito). soou grave porque foi escrito do jeito que eu já sabia (tubas e metais pesados). tentarei escrever com outro elemento.

terça-feira, 13 de maio de 2008

quantas vezes passar aqui
cada vez que passa esquece-se de algo
que levaremos dele hoje?
os olhos, o estômago, os pés
- as moedas cintilaram, a roca girou, o fio esticou-se
- escreveram meu nome numa placa de chumbo com a ponta de uma faca
- desenharam meu corpo e ofereceram aquilo que não as pertencia
- perguntam meu nome, não o digo
- e quando me perseguem, me lanço nesse rio negro
- ouço a besta dormindo

terça-feira, 6 de maio de 2008

(creio não ter lido uma só página que eu não acreditasse dizer algo sobre mim. e enquanto lia os artigos e imagens, procurava aprender mais sobre mim. cúmulo: não me interesso por aquilo que não seja eu. não desejo ausentar-me e deixo meus traços. inverte-se, as coisas me olham, em busca de si. digo a elas meu nome. desinteresso-me pela memória das coisas. e me queimo suavemente para que não me esqueça)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

morning

domingo, 4 de maio de 2008

não tenho certeza, pelas fotos veladas e pelo que escrevi em mim, palavras que esqueci, incompletas, pequenos desenhos sem perspectiva, cruzei o letes. estou descalço. até a dor esqueceu-se. o sono deixou de vir e esqueci como se respira sozinho, me esforço para ser. os desenhos esqueceram da sua imobilidade e andam pelo meu corpo: tigres negros e flores de cobre. cada coisa esqueceu-se de si e tornou-se a outra. espero de braços abertos a chuva que virá do chão, feita de cobre derretido e jade. não me lembro do nome das coisas, acho que me confundo.
depois de lamber a noite fugido, encontrei
o primeiro rio sem água
não por isso:
nele corria fogo

quinta-feira, 1 de maio de 2008

a besta-fera me escolheu como seu apóstolo e me ungiu com sua língua cor de ouro.
o que era perdeu o seu nome. a besta-fera açoita cachorros durante a noite e cavalga sobre nós. preciso descobrir o nome do que é. durante a noite, junto minha câmera e papel e parto em direção aos rios. faço o sinal da cruz e, enquanto anoitece, entro na floresta, para que a besta não me encontre com seus dentes cor de palha e olhos opacos.

domingo, 27 de abril de 2008

a besta-fera me escolheu como seu apóstolo.

quinta-feira, 24 de abril de 2008


caminho

uma mulher refletida no lago não existe debaixo dele. nas bonecas sem braços e olhos e em seus cabelos se misturam anéis de plástico. conforme afundo no rio o lugar se torna escuro. um peixe é vermelho escarlate e quando ele me toca fecho meus olhos. meus cabelos estão enfeitados com flores e pérolas gastas. perto da superfície há uma mulher refletida. ela joga flores azuis, afundam devagar comigo. estou nu, nos meus calcanhares há o desenho de asas. respiro sem dificuldade. uma concha destruída tem por dentro a cor negra: é uma tempestade. uma mulher levanta o dedo e põe sobre os lábios. silêncio. conforme afundo a água é apenas mais escura. um peixe com dentes finos como agulhas passa seus dentes sobre minha pele e me enfeita com sua luz azul clara e rosa. meus olhos se transformam. desço ao redor de rochedos transparentes como o vidro. não sei que homem é esse que vem e me venda com um pano branco. me desvendo e estou fundo
nas águas. ele desenhou em minha mão uma estrela. um escorpião caminha em meu corpo, amarro a venda como um cinto. há um narciso amarelo entre meus dedos do pé. o outro pé toca as costas do leviatã. passo por sombras maiores que eu. passo pela carcaça de um carro. lá dentro, um pingente com fotos, não posso vê-las, estão longe. as flores que me seguem estão roxas, apanho com cuidado e as passo no rosto. as pérolas são como uma chuva de estrelas: me passam, caindo, abaixo de mim se confundem com o céu. meus pés tocam o céu. adormeço.
eles estão sempre na iminência de emergir. o barco atravessa as águas enquanto eles nos observam, lá de baixo, com seus olhos sem se mover. leviatãs e serpentes, peixes imensos, enquanto caminho sobre as águas meus pés vivem a tensão de despertá-los. meus passos ecoam profundamente e entre nós há essa linha de gelo que com qualquer manifestação de peso se quebrará e haverá essa mistura de elementos, o que estava no ar (não sei para onde irá), o que estava nas profundezas da água emergirá e haverá noite. caminho devagar, carrego na língua essa pluma leve e dourada.

terça-feira, 22 de abril de 2008

me esforcei tanto em ver a alma para fora do corpo que é impossível fotografar-me. e me vejo na foto dos outros pelas coisas: um açucareiro amarelo pintado com morangos vermelhos quando eu era muito criança, como uma desculpa para me fazer comer, xícaras azuis, uma toalha de mesa. e quando pedem que eu me mostre, preciso mostrar as coisas: um pano com flores roxas, pinturas sobre a mesa de madeira escura. enfim, alguém decidiu procurar-me e me encontrar. ligou-me e combinamos de nos vermos. procurando por mim, só pode ver: uma árvore se arrasta devagar com folhas que descem em longos braços, o vento de inverno que não é daqui, cheiro de azeite, um guizo, livros abandonados.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Ele-ela contou-lhes dentro de seus cérebros - e todos ouviram-na dentro de si - o que acontecia a uma pessoa quando esta não atendia ao chamado da noite: acontecia que na cegueira da luz do dia a pessoa vivia na carne aberta e nos olhos ofuscados pelo pecado da luz - a pessoa vivia sem anestesia o horror de se estar vivo.

domingo, 20 de abril de 2008

ele levou tudo dentro de uma cabaça; bateu no meu ombro e disse que já era hora de ser feliz.

sábado, 19 de abril de 2008

a árvore antes que a vissem

a árvore antes que a vissem estava parada e morta antes dos pássaros chegarem e antes do vento e das velas escondidas em suas raízes acenderem e apagarem. quando o vento trouxe a primeira chuva as gotas caíam grossas em seu tronco oco e ecoava até a nossa casa de onde eu via a sombra dela imóvel, adormecida. os gatos às vezes subiam nela e miavam e ao fim da tarde dormiam todos juntos nos buracos das raízes descobertas. depois vieram os ciganos. e depois deles o mato cresceu com uma força assustadora e flores roxas escuras roxas claras brancas e rosas cresceram espremidas da terra e direção ao céu e não havia trilha que permanecesse e para trabalhar os homens inventavam caminhos entre as flores altas. depois veio a rodovia rápida e as flores morrerram porque os homens passaram a pegar o rio negro. até o rio que molhava as raízes secas sumiu, secou. as águas sumiram. quando choveu novamente os galhos da árvore eram braços. eu tinha sete anos e fiquei debaixo da chuva debaixo da árvore debaixo do céu e houve silêncio por meia hora. minha mãe me buscou na chuva e eu não falei nada durante dias. os ciganos passaram por ali mais algumas vezes mas só deixavam lixo. um dia também fomos embora e deixamos a casca de uma casa e gatos mortos e gatos pequenos andando pela casa com as bocas sujas de leite que eu dava com uma mamadeira pequena e às vezes eles acordavam mortos duros e era toda a tristeza e às vezes eles acordavam vivos e cresciam e sumiam e eu me esquecia de seus nomes e mais gatos vinham e mais iam embora. o primeiro gato morto foi levado pela água do rio que secou de tristeza, um homem que envelhecia dez anos em dois o matara a facadas num saco de lixo. e quando a noite caía a lua ficava presa nos galhos da árvore e se libertava aos pedaços, até sumir. as pombas quando minha mãe colocou tábuas com pregos no telhado pousaram na árvore e partiram. atrás da árvore a cidade comia a floresta na montanha, as casas iam subindo destruindo destruindo. um dia não choveu e eu levei minhas coisas amarradas nas costas nos braços uma bicicleta malas com rodinhas até a rodoviária e com seus braços longos a árvore foi rasgando tudo. minha bisavó antes de morrer com seus dedos tortos e frios ungiu-se. e separados esperando o fim das coisas. no quintal as plantas se descontrolaram e nasceram flores laranjas no limoeiro e a ameixeira secou quando separamos sua outra com um muro. depois cortamos a outra e um carro velho sangrando negro foi morar e seu sangue escorria nas pedras porosas por cima da fossa. fomos matando tudo. o jardim deixamos os porcos-da-índia comerem, a terra era seca e preta. não me lembro onde foram parar as orquídeas amarradas na ameixeira, um dia ventou e esqueci. uma primavera roxa cresceu até minha janela, e minha mãe a cortava com facas velhas e tesouras e depois deitava-se morrendo no sofá de febre, a pele toda ferida.
choveu sobre as paredes desenhadas de giz, os desenhos surgiam na chuva coloridos e irreais. depois foram todos embora e tudo foi ao chão. vamos secando também. um a um. a pele enfraquecendo, os olhos caindo, a pele esfriando e entortando os dedos e a marca ungida da família na testa surge depois dos sessenta. os olhos caem dos lados, olhos verdes claros, azuis, cinzas, castanhos que são um mistério leve de ar. e esse vento sem fim.
eu bani uma a uma as memórias. cortei as coisas que vinham junto, aos pedaços mal-feitos, como uma cirurgia mal-preparada, mal-feita, desesperada. tirei os quadros e esqueci seus autores suas cores o cheiro da terra da madeira das coisas. de vez em quando me lembro de um gesto na infância que risca a fogo tudo novamente. mas onde deveria haver algo, esqueci-me: e pela ausência do que era tento inventar, criando pela falta. depois dizem que minha memória é ruim: não é: é dilacerada.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

antes do açoite na água escura e da chuva e da areia e da terra negra
escrevi em sua cabeça de barro essas palavras com chumbo
contra a pele macia da cabeça de barro:

eu
Ilu Limnu, que sonhei com os nomes eu mesmo
antes dos destinos, coberto de ouro em pó
me ausentarei de tudo para dentro deles
em minha ausência estarei em tudo

carta I

guardei os talheres brilhantes
ouço uma música deliciosa de Arvo Part
azeite
sal
água
ontem banharam meus pés.

o banheiro está organizado:
cada coisa em seu lugar
o pano de flores para a parede está na bolsa em silêncio
são vermelhas e marrons escuras
sonhei que eu tirava uma foto como a foto da Frida para a capa da Vogue
com flores no fundo
sonhei escolhendo os panos
e antes de tudo
porque quando vi a capa já a conhecia

amanhã não terá notícias minhas.

e depois (lampejo branco) sim.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

céu

a besta fera

ela veio sem que eu percebesse e sentou-se ao meu lado, desde então está comigo comendo um pouco de tudo que como, vendo um pouco de tudo que vejo, com suas patas aquosas tocando tudo e dissolvendo. não me lembro quando chegou. às vezes fala comigo por sonho, e em sonho me emudeço. quando me calo por muito tempo ela me arranha o rosto e os olhos e adormece na minha barba, tranqüila. quando está furiosa, sinto cheiro de alecrim torrado e febre. põe a pata de seis dedos no meu peito quando dorme. segura meu coração com os dentes. a tudo devo uma desculpa a ela, não posso esquecê-la: sinto que se diverte quando esqueço que está por perto e espera, paciente. um dia dormirei mais pesado e ela me carregará nas costas cor de cobre e violeta.