domingo, 27 de abril de 2008

a besta-fera me escolheu como seu apóstolo.

quinta-feira, 24 de abril de 2008


caminho

uma mulher refletida no lago não existe debaixo dele. nas bonecas sem braços e olhos e em seus cabelos se misturam anéis de plástico. conforme afundo no rio o lugar se torna escuro. um peixe é vermelho escarlate e quando ele me toca fecho meus olhos. meus cabelos estão enfeitados com flores e pérolas gastas. perto da superfície há uma mulher refletida. ela joga flores azuis, afundam devagar comigo. estou nu, nos meus calcanhares há o desenho de asas. respiro sem dificuldade. uma concha destruída tem por dentro a cor negra: é uma tempestade. uma mulher levanta o dedo e põe sobre os lábios. silêncio. conforme afundo a água é apenas mais escura. um peixe com dentes finos como agulhas passa seus dentes sobre minha pele e me enfeita com sua luz azul clara e rosa. meus olhos se transformam. desço ao redor de rochedos transparentes como o vidro. não sei que homem é esse que vem e me venda com um pano branco. me desvendo e estou fundo
nas águas. ele desenhou em minha mão uma estrela. um escorpião caminha em meu corpo, amarro a venda como um cinto. há um narciso amarelo entre meus dedos do pé. o outro pé toca as costas do leviatã. passo por sombras maiores que eu. passo pela carcaça de um carro. lá dentro, um pingente com fotos, não posso vê-las, estão longe. as flores que me seguem estão roxas, apanho com cuidado e as passo no rosto. as pérolas são como uma chuva de estrelas: me passam, caindo, abaixo de mim se confundem com o céu. meus pés tocam o céu. adormeço.
eles estão sempre na iminência de emergir. o barco atravessa as águas enquanto eles nos observam, lá de baixo, com seus olhos sem se mover. leviatãs e serpentes, peixes imensos, enquanto caminho sobre as águas meus pés vivem a tensão de despertá-los. meus passos ecoam profundamente e entre nós há essa linha de gelo que com qualquer manifestação de peso se quebrará e haverá essa mistura de elementos, o que estava no ar (não sei para onde irá), o que estava nas profundezas da água emergirá e haverá noite. caminho devagar, carrego na língua essa pluma leve e dourada.

terça-feira, 22 de abril de 2008

me esforcei tanto em ver a alma para fora do corpo que é impossível fotografar-me. e me vejo na foto dos outros pelas coisas: um açucareiro amarelo pintado com morangos vermelhos quando eu era muito criança, como uma desculpa para me fazer comer, xícaras azuis, uma toalha de mesa. e quando pedem que eu me mostre, preciso mostrar as coisas: um pano com flores roxas, pinturas sobre a mesa de madeira escura. enfim, alguém decidiu procurar-me e me encontrar. ligou-me e combinamos de nos vermos. procurando por mim, só pode ver: uma árvore se arrasta devagar com folhas que descem em longos braços, o vento de inverno que não é daqui, cheiro de azeite, um guizo, livros abandonados.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Ele-ela contou-lhes dentro de seus cérebros - e todos ouviram-na dentro de si - o que acontecia a uma pessoa quando esta não atendia ao chamado da noite: acontecia que na cegueira da luz do dia a pessoa vivia na carne aberta e nos olhos ofuscados pelo pecado da luz - a pessoa vivia sem anestesia o horror de se estar vivo.

domingo, 20 de abril de 2008

ele levou tudo dentro de uma cabaça; bateu no meu ombro e disse que já era hora de ser feliz.

sábado, 19 de abril de 2008

a árvore antes que a vissem

a árvore antes que a vissem estava parada e morta antes dos pássaros chegarem e antes do vento e das velas escondidas em suas raízes acenderem e apagarem. quando o vento trouxe a primeira chuva as gotas caíam grossas em seu tronco oco e ecoava até a nossa casa de onde eu via a sombra dela imóvel, adormecida. os gatos às vezes subiam nela e miavam e ao fim da tarde dormiam todos juntos nos buracos das raízes descobertas. depois vieram os ciganos. e depois deles o mato cresceu com uma força assustadora e flores roxas escuras roxas claras brancas e rosas cresceram espremidas da terra e direção ao céu e não havia trilha que permanecesse e para trabalhar os homens inventavam caminhos entre as flores altas. depois veio a rodovia rápida e as flores morrerram porque os homens passaram a pegar o rio negro. até o rio que molhava as raízes secas sumiu, secou. as águas sumiram. quando choveu novamente os galhos da árvore eram braços. eu tinha sete anos e fiquei debaixo da chuva debaixo da árvore debaixo do céu e houve silêncio por meia hora. minha mãe me buscou na chuva e eu não falei nada durante dias. os ciganos passaram por ali mais algumas vezes mas só deixavam lixo. um dia também fomos embora e deixamos a casca de uma casa e gatos mortos e gatos pequenos andando pela casa com as bocas sujas de leite que eu dava com uma mamadeira pequena e às vezes eles acordavam mortos duros e era toda a tristeza e às vezes eles acordavam vivos e cresciam e sumiam e eu me esquecia de seus nomes e mais gatos vinham e mais iam embora. o primeiro gato morto foi levado pela água do rio que secou de tristeza, um homem que envelhecia dez anos em dois o matara a facadas num saco de lixo. e quando a noite caía a lua ficava presa nos galhos da árvore e se libertava aos pedaços, até sumir. as pombas quando minha mãe colocou tábuas com pregos no telhado pousaram na árvore e partiram. atrás da árvore a cidade comia a floresta na montanha, as casas iam subindo destruindo destruindo. um dia não choveu e eu levei minhas coisas amarradas nas costas nos braços uma bicicleta malas com rodinhas até a rodoviária e com seus braços longos a árvore foi rasgando tudo. minha bisavó antes de morrer com seus dedos tortos e frios ungiu-se. e separados esperando o fim das coisas. no quintal as plantas se descontrolaram e nasceram flores laranjas no limoeiro e a ameixeira secou quando separamos sua outra com um muro. depois cortamos a outra e um carro velho sangrando negro foi morar e seu sangue escorria nas pedras porosas por cima da fossa. fomos matando tudo. o jardim deixamos os porcos-da-índia comerem, a terra era seca e preta. não me lembro onde foram parar as orquídeas amarradas na ameixeira, um dia ventou e esqueci. uma primavera roxa cresceu até minha janela, e minha mãe a cortava com facas velhas e tesouras e depois deitava-se morrendo no sofá de febre, a pele toda ferida.
choveu sobre as paredes desenhadas de giz, os desenhos surgiam na chuva coloridos e irreais. depois foram todos embora e tudo foi ao chão. vamos secando também. um a um. a pele enfraquecendo, os olhos caindo, a pele esfriando e entortando os dedos e a marca ungida da família na testa surge depois dos sessenta. os olhos caem dos lados, olhos verdes claros, azuis, cinzas, castanhos que são um mistério leve de ar. e esse vento sem fim.
eu bani uma a uma as memórias. cortei as coisas que vinham junto, aos pedaços mal-feitos, como uma cirurgia mal-preparada, mal-feita, desesperada. tirei os quadros e esqueci seus autores suas cores o cheiro da terra da madeira das coisas. de vez em quando me lembro de um gesto na infância que risca a fogo tudo novamente. mas onde deveria haver algo, esqueci-me: e pela ausência do que era tento inventar, criando pela falta. depois dizem que minha memória é ruim: não é: é dilacerada.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

antes do açoite na água escura e da chuva e da areia e da terra negra
escrevi em sua cabeça de barro essas palavras com chumbo
contra a pele macia da cabeça de barro:

eu
Ilu Limnu, que sonhei com os nomes eu mesmo
antes dos destinos, coberto de ouro em pó
me ausentarei de tudo para dentro deles
em minha ausência estarei em tudo

carta I

guardei os talheres brilhantes
ouço uma música deliciosa de Arvo Part
azeite
sal
água
ontem banharam meus pés.

o banheiro está organizado:
cada coisa em seu lugar
o pano de flores para a parede está na bolsa em silêncio
são vermelhas e marrons escuras
sonhei que eu tirava uma foto como a foto da Frida para a capa da Vogue
com flores no fundo
sonhei escolhendo os panos
e antes de tudo
porque quando vi a capa já a conhecia

amanhã não terá notícias minhas.

e depois (lampejo branco) sim.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

céu

a besta fera

ela veio sem que eu percebesse e sentou-se ao meu lado, desde então está comigo comendo um pouco de tudo que como, vendo um pouco de tudo que vejo, com suas patas aquosas tocando tudo e dissolvendo. não me lembro quando chegou. às vezes fala comigo por sonho, e em sonho me emudeço. quando me calo por muito tempo ela me arranha o rosto e os olhos e adormece na minha barba, tranqüila. quando está furiosa, sinto cheiro de alecrim torrado e febre. põe a pata de seis dedos no meu peito quando dorme. segura meu coração com os dentes. a tudo devo uma desculpa a ela, não posso esquecê-la: sinto que se diverte quando esqueço que está por perto e espera, paciente. um dia dormirei mais pesado e ela me carregará nas costas cor de cobre e violeta.