sábado, 19 de abril de 2008

a árvore antes que a vissem

a árvore antes que a vissem estava parada e morta antes dos pássaros chegarem e antes do vento e das velas escondidas em suas raízes acenderem e apagarem. quando o vento trouxe a primeira chuva as gotas caíam grossas em seu tronco oco e ecoava até a nossa casa de onde eu via a sombra dela imóvel, adormecida. os gatos às vezes subiam nela e miavam e ao fim da tarde dormiam todos juntos nos buracos das raízes descobertas. depois vieram os ciganos. e depois deles o mato cresceu com uma força assustadora e flores roxas escuras roxas claras brancas e rosas cresceram espremidas da terra e direção ao céu e não havia trilha que permanecesse e para trabalhar os homens inventavam caminhos entre as flores altas. depois veio a rodovia rápida e as flores morrerram porque os homens passaram a pegar o rio negro. até o rio que molhava as raízes secas sumiu, secou. as águas sumiram. quando choveu novamente os galhos da árvore eram braços. eu tinha sete anos e fiquei debaixo da chuva debaixo da árvore debaixo do céu e houve silêncio por meia hora. minha mãe me buscou na chuva e eu não falei nada durante dias. os ciganos passaram por ali mais algumas vezes mas só deixavam lixo. um dia também fomos embora e deixamos a casca de uma casa e gatos mortos e gatos pequenos andando pela casa com as bocas sujas de leite que eu dava com uma mamadeira pequena e às vezes eles acordavam mortos duros e era toda a tristeza e às vezes eles acordavam vivos e cresciam e sumiam e eu me esquecia de seus nomes e mais gatos vinham e mais iam embora. o primeiro gato morto foi levado pela água do rio que secou de tristeza, um homem que envelhecia dez anos em dois o matara a facadas num saco de lixo. e quando a noite caía a lua ficava presa nos galhos da árvore e se libertava aos pedaços, até sumir. as pombas quando minha mãe colocou tábuas com pregos no telhado pousaram na árvore e partiram. atrás da árvore a cidade comia a floresta na montanha, as casas iam subindo destruindo destruindo. um dia não choveu e eu levei minhas coisas amarradas nas costas nos braços uma bicicleta malas com rodinhas até a rodoviária e com seus braços longos a árvore foi rasgando tudo. minha bisavó antes de morrer com seus dedos tortos e frios ungiu-se. e separados esperando o fim das coisas. no quintal as plantas se descontrolaram e nasceram flores laranjas no limoeiro e a ameixeira secou quando separamos sua outra com um muro. depois cortamos a outra e um carro velho sangrando negro foi morar e seu sangue escorria nas pedras porosas por cima da fossa. fomos matando tudo. o jardim deixamos os porcos-da-índia comerem, a terra era seca e preta. não me lembro onde foram parar as orquídeas amarradas na ameixeira, um dia ventou e esqueci. uma primavera roxa cresceu até minha janela, e minha mãe a cortava com facas velhas e tesouras e depois deitava-se morrendo no sofá de febre, a pele toda ferida.
choveu sobre as paredes desenhadas de giz, os desenhos surgiam na chuva coloridos e irreais. depois foram todos embora e tudo foi ao chão. vamos secando também. um a um. a pele enfraquecendo, os olhos caindo, a pele esfriando e entortando os dedos e a marca ungida da família na testa surge depois dos sessenta. os olhos caem dos lados, olhos verdes claros, azuis, cinzas, castanhos que são um mistério leve de ar. e esse vento sem fim.

3 comentários:

Unknown disse...

As raízes parecem fundas e frágeis...
Fiquei sem ar no ritmo do que escreveu...
Vi tudo e tanto e forte:árvore, carro, gato, rio etc etc etc etc.
Flávia

Lembamuxi disse...

flávia,
vamos tomar um suco pra arejar?

Vinícius Mariano disse...

é.
fiquei sem ar tb. e gostei.
árvores, pessoas, mortes, ventos, tempo. ufa. tudo tão rápido e material que não dá tempo...